
Rucelmar Reis
Rucelmar Reis é empreendedor, com vasta experiência em tecnologia e negócios digitais. Fundador e sócio de diversas empresas, atua como mentor e conselheiro de startups. Formado em ESADE Barcelona e MIT, une visão estratégica e prática no desenvolvimento de negócios.
Na veia
Vibe Coding: “Haja Luz” é apenas para seres divinos!
Vivemos tempos messiânicos na tecnologia. A promessa da vez, sussurrada em cada keynote e fórum de desenvolvedores, chama-se "Vibe Coding". A ideia é sedutora, quase transcendental: um desenvolvedor, ou mesmo um leigo, descreve uma necessidade em linguagem humana e, como num passe de mágica, a Inteligência Artificial materializa um software funcional. É a fantasia do "Haja luz, e houve luz" transposta para o universo do código. Uma fantasia perigosa que confunde a velocidade da criação com a solidez da fundação, e que pode transformar o sonho da democratização digital na construção de uma monumental Torre de Babel, prestes a ruir sobre os negócios que deveria sustentar.
Por favor, não me entendam mal. Eu sei que a aceleração é inebriante. Startups como a Lovable e a Manus demonstram uma capacidade antes impensável de gerar aplicações complexas sem que uma única linha de código seja escrita manualmente. Uau! A barreira de entrada, antes um muro alto guardado por sacerdotes da sintaxe, foi literalmente implodida. O impacto nos negócios é direto e brutal: a pressão por velocidade, por entregar o próximo "unicórnio" antes da concorrência, encontra no Vibe Coding o companheiro ideal dos desavisados. É a promessa de transformar qualquer gerente de produto em um criador, qualquer ideia de guardanapo em um MVP antes do café esfriar. O mercado, viciado em adrenalina e crescimento exponencial, aplaude de pé. Mas, como na história do Cavalo de Tróia, a euforia do presente recebido nos impede de ver a consequência de colocarmos esse modelo para dentro de nossos projetos, sem antes verificar o que tem dentro dele.
O Fantasma na Máquina: A Dívida Técnica como Pecado Original
O problema é que a ordem "Haja luz" é para seres divinos, que criam a partir do nada e cuja obra é, por definição, perfeita. Nós, meros mortais, se apenas soubermos dar ordens de linguagem natural a uma máquina, somos pseudo-programadores, brincando com uma força que mal compreendemos. Acreditar que dominar a "vibe" é suficiente para entregar sistemas robustos e confiáveis é o pecado original da nova era do desenvolvimento. É como entregar um bisturi a alguém que assistiu a um vídeo de cinco minutos sobre cirurgia e esperar que ele realize um transplante de coração.
Os especialistas soam o alarme, mas a música da produtividade é alta demais. A Veracode, em um estudo recente, revelou a dura realidade: 45% do código gerado por IA ainda contém vulnerabilidades clássicas da lista OWASP Top-10. A Wiz vai além e aponta que 20% dos aplicativos criados via Vibe Coding possuem falhas graves de segurança ou configuração. O código compila, a aplicação funciona, a "luz" se faz. Mas é uma luz fraca, bruxuleante, que esconde sombras repletas de vulnerabilidades. O caso da startup Enrichlead é emblemático: seu fundador orgulhosamente anunciou uma plataforma 100% gerada por IA, que dias depois foi exposta como um queijo suíço, repleta de falhas de segurança primárias que permitiam acesso irrestrito a dados e funcionalidades pagas. O projeto ruiu. A luz se apagou.
O código gerado por IA, treinado em bilhões de linhas de código público – muitas delas de baixa qualidade –, frequentemente ressuscita os piores demônios da programação: chaves de API expostas, lógica de autenticação no lado do cliente, uso de funções perigosas como eval(), e a desserialização insegura de dados, uma porta aberta para a execução remota de código. Pior ainda, como demonstrado em estudos, a segurança do código se degrada a cada nova iteração. A cada "ajuste fino" pedido à IA, novas rachaduras aparecem na fundação, invisíveis ao olho nu, mas fatais.
O Evangelho Esquecido: S-SDLC como Alicerce da Criação
Minha formação técnica exigiu que eu conhecesse os alicerces de tudo que a gente criava. Naquele momento, era regra determinar o Ciclo de Vida do Software e seus fundamentos. Precisávamos seguir o manual de instruções para construir qualquer coisa: o Secure Software Development Lifecycle (S-SDLC). Longe de ser um entrave burocrático, o S-SDLC é o mapa que guia a construção, a disciplina que separa o artesão do amador. É a estrutura que garante que a casa seja construída sobre a rocha, e não sobre a areia movediça da pressa.
O S-SDLC nos força a fazer as perguntas difíceis desde o início. Na fase de Requisitos, ele nos obriga a pensar não apenas no que o software deve fazer, mas no que ele não deve permitir. No Design, nos força a modelar as ameaças, a antecipar os ataques, a planejar as defesas. No Desenvolvimento, ele institui a revisão de código e o uso de ferramentas de análise estática (SAST) e de composição de software (SCA) como anjos da guarda, verificando cada tijolo antes que ele seja assentado. Na Verificação, testes dinâmicos (DAST) e de penetração agem como o teste de estresse final, garantindo que a estrutura suporte a pressão do mundo real.
Alguns podem dizer que isso é coisa do passado, ou coisa de velhos programadores. Mas, ignorar essa disciplina em nome da "vibe" é uma aposta irresponsável. É declarar que a arquitetura e a engenharia são desnecessárias porque agora temos uma pistola de pregos super-rápida. O resultado inevitável não é um arranha-céu, mas uma grande chance de se tornar uma pilha de escombros.
Do Milagre Digital à Catástrofe Corporativa
E essa discussão não é apenas técnica, dos nerds de plantão. O impacto nos negócios dessa negligência também é devastador. Uma vulnerabilidade de SQL Injection, nascida de um prompt apressado, não é um mero bug técnico; é a porta de entrada para uma violação de dados que pode custar milhões em multas sob a GDPR ou LGPD, destruir a confiança do cliente e apagar uma marca do mapa. A configuração inadequada de um banco de dados, sugerida por uma IA que não entende o contexto regulatório do seu setor (seja ele financeiro, de saúde ou outro), pode levar à exposição de informações sensíveis e ao colapso da reputação de uma empresa.
O Vibe Coding, sem a governança, cria uma ilusão de produtividade. As equipes entregam mais rápido, os executivos veem gráficos de velocity subindo, mas o que está sendo acumulado é uma dívida técnica e de segurança impagável. Cada linha de código gerada sem escrutínio é um passivo oculto no balanço da empresa, uma bomba-relógio esperando para detonar.
Além da Vibe: Rumo à Criação Consciente
A questão, portanto, não é renegar a IA. De forma alguma. A onda chegou e não há como voltar atrás. O Vibe Coding é uma ferramenta de poder imenso. A verdadeira escolha é entre usá-la como um deus impulsivo ou como um artesão consciente. O futuro não pertence ao programador que apenas "vibra" com a máquina, mas àquele que une a velocidade da IA com o rigor da engenharia.
As empresas e projetos que prosperarão nesta nova era serão aquelas que entenderem que a segurança não é um freio, mas o próprio sistema de direção. Serão aquelas que integrarem a Governança do Código e suas ferramentas não como um custo, mas como o investimento mais crucial em sua própria sobrevivência.



